Interrogando-se sobre a triste hipótese de que o Concílio Vaticano II, a poucas décadas da sua conclusão, corria o risco de ser esquecido – ou talvez encoberto, enfraquecido – pela Igreja Católica que o celebrou, em 2005 Hans Küng redigiu uma de suas últimas contribuições para a revista Concilium.
Pensado especificamente para a revista internacional que ele mesmo havia ajudado a fundar com o Concílio ainda em curso, nesse artigo o teólogo de Tübingen optava por deixar de lado os meros dados das notícias e, em vez disso, se concentrar no essencial. Ele fez isso baseando seu raciocínio em duas palavras-chave: herança e tarefa.
Repropomos agora esse texto, com alguns cortes, em homenagem a uma figura de fiel e de pensador que tanto ofereceu à nossa consciência eclesial e conciliar. E que continua nos estimulando, infundindo esperança na nossa alma.
O artigo é publicado por Editora Queriniana, 07-04-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Concílio Vaticano II nos deixou uma herança preciosa, embora problemática. Uma herança que, em vez de recolher e fazer frutificar, também pode ser rejeitada ou pelo menos ser deixada inutilizada. Mas quão pobres seriam a Igreja Católica e a cristandade como um todo sem esse Concílio! Nenhuma outra Igreja desde os tempos da Reforma realizou tal reforma. Mas prossigamos em ordem:
Ponto 1: Se esse Concílio não tivesse existido, na Igreja Católica se continuaria considerando a liberdade religiosa e a tolerância como produtos nocivos do moderno espírito do tempo; nos países católicos, se continuaria rejeitando a liberdade religiosa às outras comunidades religiosas (“heréticas”).
Depois de longas e duras discussões, o Vaticano II fez uma virada que, para os ideólogos da infalibilidade, dificilmente era concebível: que toda pessoa tem direito à liberdade religiosa; que pode agir, precisamente nas coisas religiosas, segundo a sua própria consciência, livre de qualquer constrição; que toda comunidade religiosa tem o direito ao livre exercício público da religião, segundo as suas próprias leis.
Com efeito, a partir do Vaticano II, nos países católicos, em geral, cessou a discriminação contra os protestantes. Não havia mais nenhum impedimento para eles para a formação de pastores, para a construção de edifícios eclesiásticos, para a difusão da Bíblia e para a colaboração em dar uma marca à vida social. Essa liberdade religiosa vivida também beneficiou obviamente os católicos que viviam em regiões de “predomínio” protestante.
Ponto 2: Se esse Concílio não tivesse existido, a Igreja Católica continuaria se isentando do movimento ecumênico, travando contra as outras confissões guerras frias com pena e língua afiadas. Ainda sempre com delimitação polêmica e até separação combativa na teologia e na sociedade – e tudo isso, é óbvio, reciprocamente!
O Vaticano II reconheceu, embora com grande dificuldade, a corresponsabilidade culpada dos católicos na divisão da Igreja e a necessidade de uma reforma contínua: não mais um simples “retorno” dos outros a uma Igreja Católica imutavelmente rígida, mas uma renovação da própria Igreja na vida e na doutrina segundo o Evangelho, como premissa para uma desejável reunificação.
Dirigimo-nos aos outros cristãos como comunidades ou Igrejas cristãs. O Concílio, porém, renunciou expressamente a novos dogmas e a novas condenações por vontade do Papa João XXIII.
Na verdade, a partir do Concílio Vaticano II, enraizou-se uma atitude ecumênica na Igreja Católica. Em todos os níveis, impuseram-se conhecimento recíproco, diálogo e colaboração, e também orações comuns e um crescimento das comunidades litúrgicas. Aproximações ecumênicas também são registradas na teologia: particularmente evidentes na exegese bíblica, na história da Igreja, na pedagogia religiosa e na teologia prática, mas, até onde a vista alcança, também na dogmática.
Isso levanta a pergunta sobre por que mesmo na Alemanha (como nos Estados Unidos) não se leva em frente a integração das faculdades teológicas, no sinal do ecumenismo e da escassez de recursos nos orçamentos públicos. Mas a relação das comunidades cristãs entre si e especialmente dos seus párocos também melhorou decisivamente sob a influência do Vaticano II e, ao mesmo tempo, também do Conselho Mundial de Igrejas (CMI); em muitos casos, a relação se tornou colegial ou, melhor, amigável.
Ponto 3: Se esse Concílio não tivesse existido, as outras religiões mundiais ainda seriam para a Igreja sempre um objeto sobretudo do confronto negativo e polêmico, e de estratégias missionárias de conquista. Hostilidade especialmente contra os muçulmanos e, em particular, os judeus. O antissemitismo nacional-socialista, de fundo racista, teria sido impossível sem o secular antijudaísmo religioso das Igrejas cristãs.
Para o Concílio Vaticano II, porém, todos os povos, com as suas diferentes religiões, formam uma única comunidade: de modos diversos, buscam responder às mesmas perguntas fundamentais sobre o sentido da vida e sobre o caminho da existência. Nada, portanto, deveria ser rejeitado daquilo que é verdadeiro e santo nas outras religiões – o resplandecer da única verdade que ilumina todos os homens e mulheres. Palavras de estima pelo hinduísmo, pelo budismo e particularmente pelo Islã, que – segundo o exemplo de Abraão –, junto com os cristãos, adoram o único Deus e venera Jesus como profeta de Deus. A hostilidade entre cristãos e muçulmanos deve dar lugar à compreensão e ao compromisso comum com a justiça social, a paz e a liberdade.
De modo especial, porém, a Igreja cristã está ligada à religião judaica, da qual nasceu e com a qual compartilha as Sagradas Escrituras. Pela primeira vez, é decisivamente rejeitada por um Concílio uma “culpa coletiva” do povo judeu da época, ou até de hoje, na morte de Jesus; toma-se uma posição contra uma rejeição ou uma maldição do antigo povo de Deus ou, melhor, deploram-se “todos os ódios, perseguições e manifestações de antissemitismo, seja qual for o tempo em que isso sucedeu e seja quem for a pessoa que isso promoveu contra os judeus” e, ao mesmo tempo, desejam-se “mútuo conhecimento e estima” (Nostra Aetate, n. 4).
Não se deve ignorar: a partir do Concílio Vaticano II, o conhecimento e a estima pelas outras religiões e, em particular, do judaísmo cresceram enormemente – na pregação, na catequese, nos estudos e nos diálogos. Toda discriminação por motivo de raça, cor da pele, condição ou religião está vetada desde então. Reconhecemo-nos na fraternidade de todos os homens sob o mesmo Deus.
A possibilidade da salvação dos não cristãos, até mesmo dos ateus de boa-fé, ou seja, que vivem segundo a consciência, também é explicitamente reconhecida.
Ponto 4: Se esse Concílio não tivesse existido, a liturgia católica continuaria sendo uma liturgia clerical celebrada em uma língua estrangeira incompreensível, à qual o povo “assiste” apenas passivamente, em “ofícios solenes” em latim e em “missas privadas” sussurradas, voltados para uma parede.
O Vaticano II fez com que a celebração da eucaristia voltasse a se tornar a liturgia de todo o povo sacerdotal: forma compreensível, participação ativa de todos na oração e no canto comuns e ao receber a comunhão. Tudo isso como uma feliz realização dos pedidos dos Reformadores: as missas privadas medievais foram praticamente abolidas em benefício da celebração comunitária; o cálice aos leigos foi permitido pelo menos em determinadas situações; introdução da língua do povo e, desse modo, adaptação da liturgia às diferentes nações; enfim, simplificação e concentração dos ritos no essencial.
Ponto 5: Se esse Concílio não tivesse existido, a teologia e a espiritualidade da Bíblia continuariam sendo, na Igreja Católica, negligenciadas na pregação, na teologia escolar e na piedade privada. Praticamente, a tradição eclesial se situava, na teoria e na prática, acima da Sagrada Escritura – e o magistério acima de ambas. A renovação bíblica encontrou, como a litúrgica, muitas dificuldades. Praticou-se a recusa contra os métodos modernos de explicação da Escritura.
O Vaticano reconheceu a importância preeminente da Bíblia: todo anúncio eclesial, pregação, catequese e, sobretudo, a vida cristã inteira devem ser alimentados e guiados pela Escritura. O magistério não está acima da palavra de Deus, mas deve se colocar a seu serviço. Os estudos histórico-críticos da Bíblia são encorajados. O estudo da Escritura deveria ser, por assim dizer, a alma da teologia.
De fato, a partir do Vaticano II, a legitimidade de uma genuína exegese histórico-crítica não é mais contestada e, independentemente dos casos excepcionais, é difícil que seja impedida. A chamada inerrância da Escritura é reivindicada no máximo para a verdade salvífica, mas não para as afirmações puramente científicas e históricas. O acesso à Escritura para todos os fiéis foi facilitado graças a traduções de prestígio e em parte também ecumênicas. Na liturgia, há uma leitura compreensível da Escritura, segundo um novo e mais rico ordenamento das perícopes. Nenhuma liturgia dominical sem homilia. Restauração da liturgia da Palavra, mesmo independentemente da celebração da eucaristia e, em determinadas circunstâncias, dirigida por leigos.
Ponto 6: Se esse Concílio não tivesse existido, a Igreja continuaria sendo compreendida como um “império romano” sobrenatural, com o papa no topo, como soberano absoluto; debaixo dele, a “aristocracia” dos bispos e dos padres; e, enfim, em função passiva, o “povo súdito” dos fiéis. No geral, uma imagem de Igreja clerical, juridicizada e triunfalista.
O Concílio Vaticano II critica essa imagem da Igreja e compreende a Igreja – embora com compromissos fatais entre a imagem da Igreja medieval e a imagem bíblica – de nodo e fundamentalmente não como uma pirâmide hierárquica, mas como uma comunidade de fé, como communio, como povo de Deus, continuamente a caminho no mundo. Um povo de peregrinos imerso no pecado e na provisoriedade, que sempre deve estar disponível a uma constante reforma. Os detentores dos cargos não estão acima, mas dentro do povo de Deus, não como seus senhores, mas como seus servidores. O sacerdócio universal dos fiéis deve ser levado em grande consideração.
Na realidade, a partir do Vaticano II, as Igrejas locais, no quadro da Igreja universal, são novamente levadas a sério sob perspectivas muito diferentes: como comunidades litúrgicas, elas são originalmente Igreja. Os bispos devem redescobrir, sem prejuízo do primado papal, uma responsabilidade comum e colegial para a liderança da Igreja inteira – por isso a instituição de um sínodo dos bispos. Hoje, por toda a parte, existem conselhos diocesanos e conselhos paroquiais compostos por religiosos e leigos. Mas, mesmo fora da Igreja Católica, são reconhecidas as Igrejas e comunidades eclesiais: o Concílio rejeita uma equivalência entre a Igreja de Cristo e a Igreja Católica visível.
Ponto 7: Se esse concílio não tivesse existido, o mundo secular continuaria sendo considerado de modo predominantemente negativo. Ainda no século XX, a Igreja Católica, que após a Reforma e o Iluminismo perdera o senhorio medieval sobre o mundo, compreendeu-se de bom grado como baluarte sitiado. De modo defensivos e ofensivos, ela tentou assegurar os seus direitos tradicionais, com atitudes hostis ou, melhor, muitas vezes de rejeição ao progresso científico, cultural, econômico e político da humanidade moderna.
Também em relação ao mundo secular, o Vaticano II realizou uma virada positiva. A Igreja, hoje, quer ser solidária com a humanidade inteira, quer colaborar com ela, não rejeitando perguntas, mas dando respostas a elas. Ao invés de polêmica, diálogo; ao invés de conquista, testemunho convincente.
Não há nenhuma dúvida de que a Igreja Católica, a partir do Vaticano II, acolheu muitos dos pedidos do Iluminismo e de que hoje ela se posiciona decisivamente pela dignidade, pela liberdade e pelos direitos humanos, a favor do desenvolvimento e da melhoria da comunidade humana e das suas instituições, por um sadio dinamismo de toda a criatividade humana.
São prova disso: a rejeição total da guerra; o reconhecimento da democracia e da separação pacífica entre Estado e Igreja; a colaboração com uma comunidade internacional dos povos; a defesa dos fracos (povos e indivíduos) na vida econômica, social e política; a reconhecida importância do amor entre parceiros, da responsabilidade pessoal na vida matrimonial; a moral sexual mais consoante aos tempos...
Uma moral sexual mais consoante aos tempos? Pelo menos neste ponto, muitos levantarão objeções: uma moral sexual mais moderna? E como se pronuncia a encíclica Humanae vitae a esse respeito? Também ela pertence à herança do Vaticano II?
Infelizmente, devo responder: sim e não. Na realidade, ela não é um documento conciliar, mas seguramente um hipoteca conciliar! Essa encíclica se baseia em um dos inúmeros compromissos fatais entre uma esmagadora maioria orientada em sentido reformista e um exíguo partido da Cúria que podia dispor do poder do aparato nas comissões e na secretaria geral do Concílio.
Assim, não posso mais continuar escondendo que a herança do Vaticano II, junto com muitos créditos, compreende precisamente hipotecas: compromissos, obscuridades, omissões, unilateralidades, regressões, erros – pesos hereditários que, nas últimas décadas, nos deram infinitamente muito trabalho a fazer.
Naturalmente, esperávamos, em 1965, que as questões postas de lado ou adiadas, silenciadas ou vetadas no Concílio poderiam encontrar uma resposta positiva depois do Concílio da parte do papa, do sínodo dos bispos e das conferências episcopais.
Mas já se sabe: a maioria favorável às reformas, junto com o sínodo dos bispos degradado a um ineficaz órgão consultivo, depois do Concílio, foi contestada por um aparato curial avesso às reformas, que não queria o Concílio desde o princípio, que continuou obstaculizando-o no seu curso e, em seguida, se recusou a assumir a sua tarefa.
Com crescente desfaçatez, esse aparto bloqueou as reformas com encíclicas e declarações reacionárias e, sobretudo, mediante uma política personalista direcionada: torna-se bispo e cardeal só quem passou no teste de garantia romano. Quanto mais o tempo passa, mais evidente esta situação se torna: o sistema romano do absolutismo, do clericalismo e do celibatismo, que se impôs no século XI, certamente havia sido profundamente abalado pelo Concílio, mas ainda não eliminado. Pelo contrário, a burocracia curial se esforçou de todas as formas para restaurar esse sistema urbi et orbi.
Na realidade, a Cúria não rejeitou a herança do Concílio de forma alguma, como os católicos tradicionalistas fizeram sob a liderança do arcebispo Lefèbvre. No entanto, ela permitiu que a herança permanecesse inutilizada de vários modos e, em parte, também a dilapidou.
Passagens conciliares conservadoras, arrancadas pela Cúria no Concílio, tornaram-se afirmações-guia. Tudo foi interpretado olhando para o passado, e as novas abordagens epocais que orientavam para a frente foram modificadas em pontos decisivos. Nenhuma aceitação dos conhecimentos provenientes das ciências bíblicas (ou da história dos dogmas), mas sim uma enfadonha teologia neoescolástica continuamente reproduzida de novo e um autoritário Codex iuris canonici remodelado.
No entanto, a tarefa confiada pelo Concílio à Igreja – eis-me na segunda palavra-chave – não era, talvez, a de traduzir corajosamente as decisões de reforma na prática? De não frear a renovação, mas de realizá-la no sentido da ecclesia semper reformanda?
Sob Paulo VI, isso ocorreu ainda que de forma limitada, sobretudo na reforma litúrgica e nos acordos ecumênicos, mas também na questão dos casamentos mistos em relação à validade do matrimônio e à educação dos filhos; na prática penitencial, da confissão e do jejum; e também na reforma, certamente tímida, do hábito e dos títulos dos prelados...
Muitas vezes, eu me pergunto: como a Igreja Católica seria diferente hoje se também tivesse posto as suas mãos positivamente nas outras demandas que, no Concílio e na Igreja, eram e são compartilhadas por muitos, ao invés de ignorá-las?
Ponto 1: como teria sido fácil para Paulo VI, que conhecia bem a Cúria, com o Concílio Ecumênico às costas, implementar a fundo uma reforma da Cúria! Refiro-me a uma descentralização e internacionalização, mas não apenas no sentido de recorrer a pessoas de diversas nacionalidades, mas também de dar espaço para diferentes mentalidades, para um “governo” de reformadores. Em vez de fazer isso, o Papa Montini decidiu-se apenas por uma modernização da Cúria – no espírito do velho absolutismo. Não desmantelar os bastiões romanos, mas consolidá-los: uma centralização em parte ainda mais reforçada, com o resultado de que a Cúria logo voltou a ser tão forte e autoritária quanto antes do Concílio.
Ponto 2: como teria sido fácil, depois do Concílio, emitir uma encíclica convincente sobre a sexualidade, um caminho do meio razoável entre um libertinismo permissivo e um rigorismo fora do mundo, na qual se pudesse corrigir a perniciosa condenação tradicional de qualquer forma de contracepção e, ao mesmo tempo, apelar à responsabilidade!
Em vez disso, veio a já citada encíclica Humanae vitae contra todos os meios contraceptivos: o primeiro caso, na história da Igreja do século XX, em que a esmagadora maioria do povo e do clero recusou a obediência ao papa sobre uma questão relevante. E isso apesar de que, segundo a concepção papal, se tratasse, de fato, de uma doutrina “infalível” do magistério “ordinário” do papa e dos bispos (cf. LG 25), precisamente como a recusa da ordenação da mulher, por agora e pela eternidade, também ela explicitamente declarada por João Paulo II como “infalível”. A ausência quase total da exegese histórico-crítica no Concílio é perceptível a cada passo.
Ponto 3: não teria sido fácil resolver também a questão, que no Concílio foi proibido discutir, da lei do celibato? Como sempre: reconhecimento da vocação livre, segundo a Escritura, à renúncia ao matrimônio (temporária ou para sempre) e também eliminação do medieval celibato obrigatório vitalício para os padres, que não está em conformidade nem com a Escritura nem com o tempo.
E, em vez disso, aqui também, novamente a solitária decisão do papa: uma encíclica que confirma a lei do celibato – contra a vontade de muitos bispos nessa importantíssima questão, precisamente também para a Igreja dos continentes pobres de padres como a América Latina e a África. Um motivo fundamental é também o fato de que o número dos candidatos a padres e dos novos padres hoje despencou a um nível histórico baixo, e, em algumas localidades, quase a metade das paróquias já não pode ter um pároco. Diáconos casados ou teólogos leigos com poderes reduzidos, hoje aceitos, não podem ser um substitutivo dos párocos.
Ponto 4: não teria sido fácil, na eleição dos bispos, envolver, segundo a antiga tradição católica, com os conselhos presbiterais e pastorais agora criados, as regiões eclesiásticas interessadas, ou seja, clero e leigos, para que os bispos fossem mais bem aceitos, algo necessário na era da democracia? Em vez disso, permaneceu-se firme no procedimento curial secreto, no qual os candidatos são escolhidos sobretudo com base no critério da conformidade com a linha romana. O maior escândalo da história da Igreja moderna – o abuso sexual de crianças e jovens por padres – foi sistematicamente silenciado por bispos que, em 90% dos casos, foram nomeados pelo pontífice então no cargo, mas estavam menos vinculados à verdade do que à obediência em relação ao papa.
Ponto 5: enfim, como teria sido fácil transferir a eleição do papa do colégio cardinalício romano para o sínodo dos bispos, representante da Igreja universal! Em vez disso, deixou-se a escolha do papa ao grupo de cardeais, que se tornou competente somente a partir da Idade Média, que são escolhidos pelo papa e para a Cúria segundo pontos de vista romanos e que, em questões discutidas, representam mais os interesses de poder da central romana do que as exigências do povo eclesial, muitas vezes de outra opinião.
Assim, em vez de serem resolvidos, os problemas foram negados ou desgastados com soluções voltadas para o passado. Consequência: a Igreja Católica está bloqueada em um impasse e em uma enorme estagnação de problemas e de frustrações.
Quanto ao futuro: em Roma, diante da crescente pressão dos problemas (diminuição do clero, êxodo das mulheres da Igreja, falta de integração eclesial da juventude, colapso da pastoral, escândalos sexuais, necessidades financeiras...), não se deverá, talvez, seguindo a inspiração do Evangelho, tomar novamente em mãos e a sério, finalmente, a herança do Concílio, a sua grande herança espiritual?
Em vez das palavras de um magistério novamente conservador e autoritário, as palavras programáticas de João XXIII e do Concílio não readquirirão o seu vigor? Muitíssimas pessoas, dentro e fora da Igreja Católica, desejam novamente:
- “aggiornamento” [atualização] no espírito do Evangelho, ao invés da tradicional e integralista “doutrina católica” das encíclicas morais rigoristas e dos catecismos tradicionalistas;
- “colegialidade” do papa com os bispos, ao invés de um rígido centralismo romano que, nas nomeações dos bispos e na atribuição das cátedras de teologia, não leva em conta os interesses das Igrejas locais em benefício daqueles que são dóceis;
- “abertura” ao mundo moderno, ao invés de acusações, lamentações e reclamações sobre a suposta “adaptação” ao espírito do tempo;
- “diálogo”, ao invés de monólogo oficial, de inquisição e de rejeição prática da liberdade de consciência e de ensino na Igreja;
- “ecumenismo”, ao invés de uma ênfase em sentido estritamente católico-romano: que, mesmo na questão da eucaristia, se recorra à famosa distinção de João XXIII entre a substância da doutrina da fé e o seu revestimento linguístico- histórico, a uma “hierarquia das verdades” (que não são todas igualmente importantes).
Uma coisa, porém, é certa, apesar de todas as resistências e recaídas: com o Concílio Vaticano II, a Idade Média, junto com a Contrarreforma, acabou também para a Igreja Católica! Mais precisamente: o paradigma romano-medieval, contrarreformista-antimoderno teve o seu tempo.
Muitas exigências dos Reformadores e do Iluminismo foram acolhidas pela Igreja Católica, e a mudança de paradigma para uma constelação moderna- pós-moderna, freada de cima, deu grandes passos a partir de baixo. Apesar de todas as desilusões, aquele Concílio valeu a pena: o seu saldo, no geral, é positivo!
A Igreja pós-conciliar é diferente da pré-conciliar, sem dúvida alguma. A grande controvérsia acerca da forma do futuro da Igreja Católica e do cristianismo, sem dúvida, continua.
Projeto de Ética Mundial. Um debate. Revista IHU On-Line, Nº 240